Manoel Barreto

Escrever é meu divã. Escrever é meu teatro. Não me procure em minhas palavras, pois não me econtrará

Textos

FURTO FAMÉLICO, A REINCIDÊNCIA

“A próxima vez que você fô comprá pão e o roê o bico, saiba que você irá comê a parte roída”, falou a minha saudosa mãe, já com a paciência quase extrapolada, fitando-me nos olhos e de maneira bem compassada para dar ênfase às suas palavras de repreensão. Ela estava com muita raiva de mim, mas não levantou o tom da voz para repreender-me, simplesmente queria dar-me uma lição e golpear-me exatamente no meu “tendão de Aquiles”: a minha insaciável e desesperada fome que sentia quando moleque.
Éramos muitos em nossa casa, na Quintino Bocaiuva, muito mais do que “Éramos seis”. Todos tinham a sua tarefa doméstica a fazer. A mim, cabia-me fazer as pequenas compras, como: a farinha de mandioca, a farinha de tapioca, algumas verduras, algumas frutas, lá Feira de Santa Luzia. Tínhamos um carrinho de compras que me auxiliava a rebocar os meus melhores amigos, ah! Como eu gostava de fazer compras, pois na volta eu sentava-me em algum batente de calçada, para furtar alguns alimentos. Adorava farinha de tapioca, a minha mãe também adorava, mas acho que ela nunca desconfiou que eu nunca chegava com a medida, da tal farinha, intacta. Dependendo da quantidade que me mandava comprar, a quantidade surrupiada era diretamente proporcional.
Só que essas tarefas eram semanais e às vezes quinzenais; outras vezes, era sob fiscalização materna. Mas tinha uma que era realizada seis vezes por semana: a compra do pão para o desjejum e, pela tarde, para o jantar.
Às 6h da manhã, de segunda a sexta, eu e minha mãe travávamos um duelo, pois para que eu me levantasse, só mesmo depois de muita luta. Lá ia eu comprar aqueles pães enormes no comércio do Massoud. Ele rasgava uma tira de um papel grosso, de aproximadamente a largura de uma mão, e enrolava os 5 ou 6 pães e me entregava. Voltava para casa fazendo malabarismo para que os pães permanecessem presos naquela miserabilidade de papel; e aqui vai um segredinho, muitas e muitas vezes eu os prendia bem debaixo de minhas axilas e só os soltava quando chega bem próximo de casa.
Eu os prendia porque era nessa posição que eles ficavam vulneráveis e eu podia ficar com as mãos livres para afagá-los. Mas com esses afagos, não conseguia me conter e arrancava com todo carinho um bico, às vezes arrancava dois bicos, mas nunca mais do que isso, porque não queria levantar suspeitas.
Ao chegar em casa os deixava sobre a mesa da cozinha, como se nada houvesse acontecido. Ia ao banheiro tomar banho e enquanto isso a minha mãe cortava os pães, cada um era milimetricamente cortado em três iguais iguaizinhas, tudo isso para não existir no coração de seus filhos o sentimento de privilégio, de uns; ou desprivilegio, de outros. E assim que acabava de tomar banho, dirigia-me à mesa para degustar o delicioso café da manhã.
Sentava-me por primeiro, com a desculpa de que tinha que ir cedo para o colégio, Colégio Benjamim Constant, onde estudava e onde minha mãe lecionava. Mas na realidade eu queria mesmo era pegar a parte do lado do bico do pão. Odiava comer a parte do meio. Lógico que eu nunca pegava o lado que já o havia roído, escolhia sempre outro, bem crocante, para murmúrios do restante da prole. Esse ritual se repetia pela manhã e pela tarde.
E foi num belo dia, pela manhã, em que cheguei com os pães que ela me fez a promessa de que na próxima vez que comesse o bico do pão, teria que, comer o lado ruído, sobe pena de levar umas chineladas, em caso de descumprimento (fiquei apavorado, pois ela nunca havia levantado as mãos para mim), mas era preciso, uma vez que ela acabara de tipificar o crime, cominar apena. Fiquei com um nó na garganta, um nó que dói e nos faz surgir algumas lágrimas teimosas, porque não sabem se saem ou se não,  apertadas pelos cantos dos olhos.
Noutro dia pela manhã, lá fui eu comprar os pães e lá estava o Massoud e seus dois empregados, pareciam, os três, embalsamados, pois o tempo passava e eles continuavam os mesmos. Recebi os pães, nos olhamos! Nos entre olhamos! Nos tocamos! Mas não rolou nada entre nós, nem mesmo um afago. Ao chegar em casa os deixei sobre a mesa, intactos. Ao sentar-me à mesa, depois de todo o meu ritual, antes de ir para o colégio, ela já estava sentada e os pães já haviam sido cortados da mesma maneira. Elevei uma das minhas mãos para pegar o meu pedaço de pão, com a cabeça abaixada e usando a visão periférica, olhava para ver os gestos que minha mãe poderia fazer e ao mesmo tempo tentando localizar o maior pedaço, missão quase impossível! Pois foram poucas as vezes que ela errara na medida. Não tive audácia de olhar em seus olhos naquele momento; e de maneira bem lenta continuei esticando o braço para alcançar o pão, esperando que ela falasse algo, mas não saiu nem uma palavra de sua boca. Então peguei o pedaço do lado do bico, lógico. Fui para o colégio feliz e alegre da vida, já não me lembrava mais da bronca e muito menos da penalidade prometida veementemente.
À tardinha, ela chamou-me e me designou a missão de comprar o pão para o jantar. Sai às pressas. Comprei os pães e quando me apercebi, já havia comido um dos bicos. Meu coração palpitou fortemente e lembrei-me das chineladas prometidas. Pensei rapidamente o que fazer. Parei por uns instantes e lancei olhos para avistar se não havia ninguém me olhando da janela de casa, pois aquelas janelas mais pareciam uma torre de vigia de tão altas que eram, e resolvi roer os 10 ou 12 bicos, pois assim, ainda que levasse as chineladas, realizaria o meu grande sonho de comer todos os pedaços dos lados dos bicos.
Ps.: não levei as chineladas e também não comi todos os bicos, eu simplesmente fui em jejum para o colégio. Juro que preferiria ter levado as chineladas. Mas aprendi definitivamente a nunca mais roer os pães.

Manoel Barreto
Enviado por Manoel Barreto em 09/03/2014
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