Manoel Barreto

Escrever é meu divã. Escrever é meu teatro. Não me procure em minhas palavras, pois não me econtrará

Textos

ASSASSINATO NA BIBLIOTECA
As mesas todas estavam muito bem dispostas na área destinada à leitura. Era uma área retangular. Assim que os estudantes entravam na biblioteca, após subir uns três ou quatro degraus e passarem pelos fiscais, entravam em uma grande sala, na qual estavam ali alguns estagiários, responsáveis por fazer os registros dos empréstimos e devoluções dos livros, dobravam à direita e entravam na sala onde ficam os acervos literários, logo em seguida dobravam mais uma vez à direita, passando ao lado de uma escada que dava acesso a sala de leitura, na parte de cima; fazia-se quase que necessário dobrar à esquerda e percorrer o caminho mais comprido do retângulo, em busca de uma mesa para se aconchegar e deleitar-se nos estudos na área de leitura, na parte de baixo.
O retângulo era formado por um lado de estantes e por outros três lados de grandes janelas de vidros. Eram vidros meio escuros, mas que davam para ver o que acontecia tanto por aqueles que estavam do lado de dentro quanto por aqueles que estavam do lado de fora. As estantes que ficavam próximas às mesas aconchegavam em si livros de História. Eram livros, em sua maioria, que demonstravam terem sido fiéis confidentes a muitos leitores. As suas lombadas escondiam marcas de belas impressões que, mesmo com o passar dos anos, esforçavam-se para dar identidade a cada livro.
As disposições das outras estantes dentro da biblioteca lembrava-me um labirinto, feito para nos perdermos entre as várias ciências do saber. Percorrer aqueles corredores era extasiante. Era como andar e ouvir as vozes de todos os autores que deixaram-se imprimir naquelas páginas, muitas delas, já amarelada pelo imperdoável tempo.
De repente ao levantar a cabeça e olhar para frente, percebi que a sala estava quase lotada de dedicados estudantes. O silêncio era tamanho que quase dava para ouvir os pensamentos dos que ali estavam. O clima era convidativo para a mais pura reflexão. Ao olhar para os livros dispostos às mesas e as cabeças mergulhadas em suas páginas, era como se estivesse vendo os autores dos livros em um colóquio com cada estudante, tamanha a imbricação do livro com os seus devoradores.
Era uma atmosfera agradável, própria de uma biblioteca, vista por quem ama esse lugar.
Foi então que duas pessoas adentraram no recinto “sagrado”. Foi como se alguém estivesse cantando uma bela ária e semitonasse na nota mais aguda, causando irritação e desconforto mesmo àqueles ouvintes destreinados ou destituídos de aptidão musical.
Os seus semblantes eram petrificados. Seus olhares eram gélidos. Seus gestos e vestimentas eram hórridos. Ninguém, ninguém mesmo, percebeu a chegada sorrateira desses intrusos. Só eu os havia percebido, pois havia quebrado minha concentração ao buscar dar conforto a minha coluna cervical, cujo tempo de leitura já quase fundia suas vértebras.
Os dois estranhos se entreolharam e movimentaram os lábios. Não consegui entender os que eles falaram. Ah! Como gostaria, nesse momento, de ter aprendido a fazer leitura labial.
Caminharam, se esgueirando pelas estantes que formavam um dos lados do retângulo, em passos de cágado a fim de que ninguém os notassem. Eles não me olhavam. Era como se eu não estivesse ali. Ao se colocarem debaixo da luz, pude ver o rosto de um; melhor seria dizer, de uma, pois era uma mulher.
Ela tinha olhos verdes, no entanto avermelhados. Debaixo do queixo havia um sinal. Não deu para saber se era sinal de cirurgia ou apenas marca de ferimento. Era um sinal em linha quase reta e oblíqua em relação ao solo, de aproximadamente uns cinco ou oito centímetros. Seus cabelos estavam soltos, mas bastante maltratados. Pude ver também seus dentes, vi que lhe faltava um dos incisivos, o mais próximo do canino esquerdo. Seu porte físico lembrava a de um homem, mas tinha uma estatura baixa. Todo o seu corpo lembrava ódio, quase pude sentir o cheiro de enxofre do inferno.
A outra pessoa que estava na companhia dessa mulher, não podia afirmar até então, mas acho que era um homem. Esse era bem mais alto. Tinha um jeito meio grotesco e corpulento. Seus membros superiores pareciam desproporcionais, pois eram mais alongados do que o normal, causando-lhe um desentoamento na simetria corporal.  Seus movimentos lembravam os movimentos de alguém programado para realizar uma tarefa autômata, cruel e animalesca.
Enquanto isso, me encontrava estático. Não conseguia abrir a boca, muito menos fazer um gesto para que eles me vissem. Tentei, juro que tentei fazer algo, mas não consegui.
Foi aí, de repente, que o silêncio que imperava na biblioteca perdeu o seu poderio para um grito jogado aos quatro cantos daquele retângulo. Foi um grito agudo, estridente, horripilante aos meus ouvidos. Era o grito da dita mulher.
O homem, agora pude ver que realmente era um homem, correu para o centro do salão, enquanto a mulher correu na direção de uma das saídas, com o fim de não deixar que ninguém fugisse por ali.
Ambos gritavam a plenos pulmões:
--- Não adianta correr!!!! Gritavam isso ao mesmo tempo em que falavam alguns impropérios. A gente já te viu e vimos aqui para terminar o serviço!!!! Continuavam gritando.
Todos que ali estavam levantaram-se correndo na tentativa de fugir, sem mesmo saber o porquê de tudo aquilo. Alguns se jogaram sob a mesa. Outros tentavam se esconder nas páginas dos livros. Ainda outros desmaiavam de tando medo, sem saber o que estava acontecendo.
Começaram os tiros. Eu, que estava no fim do salão, permanecia em estado de choque. Só o que funcionava era a minha visão. Conseguia ver cada detalhe dos acontecimentos.
Depois de muito alvoroço, vi a mulher apontando em direção a um dos cantos do salão para o seu comparsa. Ele, então, correu numa velocidade descomunal na direção apontada, e ali estava um jovem de semblantes finos, muito bem vestido, parecia alguém dotado de um lato saber intelectual, o oposto de seu verdugo, pois este era de um semblante destituído de inteligência, um ser obtuso.
Havia medo nos olhos daquele jovem rapaz. Quase pude ver em seus olhos os olhos de seu algoz. Senti o poder da morte imperando naquele recinto “sagrado”.
Puder ver alguns gestos do jovem. Eram gestos de negativa. Era como se ele estivesse negando algo, mas ao mesmo tempo sabedor de que seu dia de morrer havia chegado. Havia também gestos dos dois seres estranhos. Eram gestos despóticos, cruéis e mortais.
A mulher, correndo na direção dos dois, bem lentamente, levou o revólver na direção da cabeça do jovem, deu um leve sorriso, um sorriso sarcástico, mostrando a seminudez de sua boca, e apertou o gatilho. Foi um único tiro. Foi o suficiente para que aquele jovem caísse ao chão. Pude ver a sua vida escapando pelo orifício, deixado por um pequeno metal, feito por mãos humanas, a fim de ceifar vidas, humanas ou não.
Nesse momento, meu corpo sente o toque de uma mão; era a mão de minha esposa que percorria o meu tórax, despertando-me do meu terrível sonho.


Manoel Barreto
Enviado por Manoel Barreto em 29/07/2014
Alterado em 29/07/2014
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