PALIMPSESTO
Dizem que tudo passa. Mas não dizem nem para onde vai nem o que se faz desse “tudo que passa”. De uma única coisa tenho certeza: nem tudo passa, posto que alguma coisa fica. E fica em nós. Fica nas nossas retinas da alma, fica nas nossas digitais do espírito, fica nas cártulas dos nossos corpos.
O ser humano é um palimpsesto, que muito embora seja raspado, a fim de ser reutilizado, ainda se verão as marcas de uma escrita antiga que foi suplantada pela nova escrita. Há humanos palimpsésticos cujas marcas de uma raspagem grosseira são visíveis aos olhos mais embrutecidos. Há, no entanto, outros em que a raspagem foi tão bem feita, que somente olhos sensíveis, treinados e experientes conseguem ver as marcas antigas. Ah! Essas marcas nos acompanham e nos acompanharão, ainda que muitas raspagens e reescritas sejam feitas (e serão feitas, queiramos ou não). Essas marcas nos assombrarão em alguns momentos ou alegar-nos-ão, em outros. Nem sempre é bom parar e olhar para dentro de nós, pois, muitas vezes, nos deparamos com um ser totalmente desconhecido, um ser que devido o tempo já não o reconhecemos devido às inúmeras raspagens e reescritas feitas. Nem tudo passa. Algumas marcas ficam, se assim não fora, não teríamos História, não teríamos Identidade, não seríamos um ser social. Mas há um problema seríssimo! Como no passado, nem sempre a cópia ou a escrita, realizada sobre o palimpsesto, era feita por copista alfabetizado, assim também nem todos os “co-escritores” de nossas vidas foram ou são pessoas capacitadas para lhe dar com outros seres semelhantes, são analfabetos no que tange ao trato humano, à educação “Redentora”. E quando isso acontece, efeitos danosos e irreparáveis se perpetuam. Os copistas analfabetos provavelmente rasparam inúmeros pergaminhos sem se darem conta da importância daquele documento para uma geração futura. Da mesma maneira algumas pessoas apagam o brilho e a luz de outros, deixando marcas profundas, sem se darem conta, muitas vezes, do mal que fazem e, por conseguinte, perpetuam uma geração deformada, vilipendiosa e cruel. Uma geração imoral, obscena e pornográfica. Há pouco disse que algumas raspagens foram feitas de maneira grosseira, porque visíveis; outras foram, no entanto, feitas de maneira a quase não deixar vestígios, pois só olhos treinados podem ver a escrita antiga. Assim se dá com os seres humanos. Digo de maneira bem contundente que, muitas vezes, da primeira categoria é mais fácil de nos defendermos, pois somos capazes de ler nas linhas, entrelinha e sublinhas. Já a segunda categoria, essa é perigosa porque podem ser dissimuladas, astutas e sorrateiras. Quem nunca se decepcionou com alguém que aparentava uma coisa, mas que na verdade era outra? No nosso trato com as pessoas podemos ser ajudadores de uma bela edificação ou podemos ser como uma erva daninha, do tipo que envelhece e deteriora a construção. Por que estou falando tudo isso?! Porque há sempre uma Escrita, uma História por detrás de nós, pessoas humanas, que deixou marcas profundas ou tênues. É essa História que determina, muitas vezes, certos tipos de comportamentos. Quero dizer com isso que se somos o que somos ou se fazemos o que fazemos é devido às raspagens e reescritas que nos são feitas diariamente. A cada movimento, a cada contato com o externo vamos nos reescrevendo, vamos nos reinventando. Não posso deixar de dizer que muitos se permitem ser reescritos ou reinventados. Ambas as faces da moeda podem ser ambíguas. Ambíguas porque algumas pessoas precisam urgentemente permitir serem reescritas, reinventadas. Reescrever-se ou reinventar-se; permitir urgentemente ser reescrito ou ser reinventado é uma luta diária, constante e interminável, mas não impossível. Quando olho para dentro de mim e vejo as raspagens que fiz e que deixei com que fossem feitas, muitas delas trazem tristeza profunda. Percebo, nesse instante, em que olho para dentro de mim, que preciso continuar a minha labuta, a minha batalha interior. Batalha contra os meus fantasmas, contra as escritas velhas que me deixaram sulcos. Escritas danosas. Algumas delas se misturam com a nova escrita, como fossem reescritas sem se preocupar em apagar a escrita velha. São rascunhos sobre rascunhos, escritas sobre escritas. É uma batalha ferrenha. A nossa mente é turbilhão de imagens conexas e desconexas, agradáveis e desagradáveis. Imagens que se misturam em um tempo pretérito/presente e presente/pretérito sem se esquecer, no entanto, de que existe um futuro. Todo esse vaivém ou vem e vai de nossas recordações, creio eu, que são como a luz que se reflete em um espelho. E esse espelho interno reflete imagens insistentemente, imagens divergentes/convergentes, imagens difusas/confusas, com o objetivo de não nos permitir que esqueçamos nossos fantasmas. Daí, uma constante luta em olhar para frente, para o futuro, mas com os pés no presente. Somos um pouco de nosso pai, um pouco de nossa mãe. Somos um pouco de tudo que nos cerca e do que contatamos. Daí a necessidade de fazer a escolha certa de nossas amizades, de nossos amores, pois os pais não o podemos escolher e as suas marcas/escritas, de nossos pais, nos acompanharão para o resto de nossas vidas. Escolher saber escolher é uma arte da administração humana, e como quaisquer artes existem técnicas a ser aplicadas. A maior parte do que temos em nós não nos pertence; é de propriedade alheia, somos meros usufrutuários, logo, podemos alienar a maior parte do que temos sem o consentimento do real proprietário, ou melhor, dos reais proprietários. Cabe a nós a decisão de repetirmos atitudes inconvenientes e desagradáveis. Cabe a nós a decisão de reescrever, em nossa prole ou em quem exercemos influência, a velha escrita com suas agramaticalidades, com seus vícios e com suas barbaridades; ou escrever uma nova escrita gramatical, sem vício, sem barbarismo. Assim, cabe a nós a escolha de viver uma vida virtuosa em vez de uma vida viciosa.
Manoel Barreto
Enviado por Manoel Barreto em 17/08/2014
Alterado em 17/08/2014 Copyright © 2014. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |