MEMÓRIAS DO 2º EXAME DA MAGISTRATURA - ENAM
Sempre pensei que, por já contar com 55/56 anos, eu seria senão o mais velho, mas pelo menos um dos poucos mais velhos a prestar o famigerado exame de habilitação para a magistratura.
Chegado o grande dia, dirigi-me à sala que me foi sorteada. Três lances de escadas, cada qual com 10 degraus, projetavam-se à minha frente como os primeiros obstáculos a serem eliminados. Subir escadas requer um preparo mental. É preciso um breve e antecipado diálogo motivacional com os meus dois fiéis e velhos amigos joelhos já abatidos pela artrose. Uma técnica que uso para distraí-los e contar os degraus um a um até chegar ao meu destino. Isso se repete também na descida. Cá estamos em frente à sala. À porta, estava a fiscal. Uma senhora com os seus quarenta e tantos anos. Havia sempre no seu rosto um sorriso amigável. Era bastante comunicativa e fazia questão de usar o meu nome todas as vezes que se dirigia mim. Creio que de cada cinco palavras que lhe escapulia duas, ela dizia em alto e bom som “Manoel”. Tive a impressão de que todos os candidatos que estavam no corredor a espera de entrar em suas salas já sabiam o meu nome. Aquilo já estava me causando um certo desconforto. Provavelmente ela deve ter lido em algum livro de “como tratar as pessoas” ou “faça amizade rapidamente” ou algo do tipo que chamar a pessoa pelo nome é agradável. Mas tudo em excesso não é bom, nem mesmo o agradável. Entrei na sala. Ali estava outro fiscal. Um jovem. Dono de um comportamento oposto ao da fiscal da porta. Ele não falava absolutamente nada. Assinei a lista. Dirigi-me à cadeira. Sentei-me. Havia na sala, além de mim, três ou quatro candidatos até esse momento. Duas filas depois da que eu estava sentado, havia um candidato de estatura baixa, de um pouco mais ou menos um metro e sessenta centímetros, calvo, bastante calvo, barba rala e espaçada, o sobrepeso chamou-me a atenção, barriga bem avantajada, abaixo do queixo havia uma sobra de tecido adiposo que ficava dependurada, a chamada gordura submentoniana ou queixo duplo. Ali estava eu absorto nos meus pensamentos, quando, de repente, tomei um susto com a entrada da fiscal falando alto e sorrindo perguntando para o dito homem se ele tinha um irmão gêmeo. Disse ela: “ei fulano (ela havia memorizado os nomes de todos os candidatos) você tem um irmão gêmeo?!!” Havia um sorriso de alegria no rosto dela que parecia querer revelar para os que estavam na sala que ela havia feito uma grande descoberta. Não havia maldade nessa senhora. Havia, na realidade, não sei dizer se um comportamento inocente ou inconveniente. Prefiro acreditar na inocência. Ele educadamente perguntou: “como?” a fiscal repetiu: “você tem um irmão gêmeo?!” “Não”, retrucou o homem em som baixo e relutante. Ela continuou falando: “nossa, tem um homem igualzinho, igualzinho, igualzinho você. Quando ele passou por mim, pensei: como que o fulano passou por mim e eu não vi ele?”. Ela falava gesticulando e batendo levemente com o cutelo de uma das mãos sobre a palma da outra a fim de enfatizar o quanto eram parecidos. Nesse momento, os poucos candidatos que já se encontravam na sala estavam todos alertas e de olhos vidrados no homem. Se ele tivesse a intensão de passar despercebido, seus planos haviam acabado de serem frustrados. Passados alguns minutos, lá vem a fiscal assaz eufórica, quase que gritando: “venha cá, venha cá, rápido! Venha ver o homem que igual a você”. O modo que ela gesticulava e falava demonstrava o anseio que tinha em provar sua convicção. O candidato, forçado pelas circunstâncias e não querendo ser grosseiro, foi lentamente até a porta (acho que ele não queria ver ou estava dando um tempo para que o dito cujo sumisse). Chegando lá, a fiscal lhe pegou por um dos ombros com uma das mãos e com a outra mão lhe apontava o homem, o tal sósia. Dizia ela: “não é idêntico a você! Né que é igual?!!” O homem moveu os lábios forçando um sorriso e retornou para a sala com uma expressão facial de que não gostou do que viu. Não gostou da comparação. Ser comparado com outra pessoa nem sempre é agradável. Após esse episódio, como em que um passe de mágica, a sala encheu de candidatos. Observei que quase a totalidade dos candidatos eram pessoas da minha idade ou mais velhas. Pensei comigo: “será que estou na sala errada! Será que vou prestar concurso para uma vaga em uma casa de repouso!” Creio que segregaram os mais velhos em uma sala só. Havia tantas pessoas já quase que, juridicamente, idosas, quanto pessoas que já tinham o direito ao “cartão passe fácil”. Eu quase que senti o cheiro da velhice ali na sala. Sim, a velhice tem cheiro característico. Dizem os estudiosos que tal cheiro se dá pela concentração do 2-nonenal, substância química, que se acentua na pele do idoso e que provoca um cheiro característico. Até hoje eu sinto o cheiro característico de meu pai, principalmente, quando dos últimos dias de vida dele. Quantos netos não guardam em suas memórias o cheirinho gostoso e singular dos seus avós?!! Ao ver todas aquelas pessoas já com uma boa idade de vida em busca de um sonho, fez-me sair dali com muito mais ânimo e disposição para continuar em busca de novas conquistas.
Manoel Barreto
Enviado por Manoel Barreto em 27/11/2024
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